quarta-feira, 28 de setembro de 2011

AS RELIGIÕES NEGRAS DO BRASIL

AS RELIGIÕES NEGRAS DO BRASIL

Texto de Reginaldo Prandi - um dos maiores peritos do Assunto!


Para uma sociologia dos cultos
afro-brasileiros

As religiões negras na sociedade branca
O quadro das religiões negras, ou religiões afro-brasileiras, é bastante diversificado. Em seu conjunto, até os anos 30 deste século, as religiões negras poderiam ser incluídas na categoria das religiões étnicas ou de preservação de patrimônios culturais dos antigos escravos negros e seus descendentes, enfim, religiões que mantinham vivas tradições de origem africana. Formaram-se em diferentes áreas do Brasil, com diferentes ritos e nomes locais derivados de tradições africanas diversas: candomblé na Bahia, xangô em Pernambuco e Alagoas, tambor de mina no Maranhão e Pará, batuque no Rio Grande do Sul, macumba no Rio de Janeiro. Na Bahia originou-se também o muito popular candomblé de caboclo e o menos conhecido candomblé de egum. Mais recentemente, no Rio de Janeiro e depois em São Paulo, constituiu-se a umbanda, que logo se disseminou por todo o país, abrindo, de certo modo, caminho para uma nova etapa de difusão do antigo candomblé. O Nordeste foi berço também de outras modalidades religiosas mais próximas das religiões indígenas, mas que cedo ou tarde acabaram por incorporar muito das religiões afro-brasileiras ou as influenciar. Trata-se do catimbó, religião de espíritos aos quais se dá o nome de mestres e caboclos, que se incorporam no transe para aconselhar, receitar e curar. Esse tronco afro-ameríndio tem particularidades em diferentes lugares, sendo chamado de jurema, toré, pajelança, babaçuê, encantaria e cura (1).
Tudo indica que a organização das religiões negras no Brasil deu-se tardiamente. Uma vez que as últimas levas de africanos trazidos para o Novo Mundo nas últimas décadas do século XIX, período final da escravidão, foram fixadas sobretudo nas cidades e em ocupações urbanas, os africanos desse período puderam viver no Brasil em maior contato uns com os outros, física e socialmente, com maior mobilidade e, de certo modo, liberdade de movimentos, num processo de interação que não conheceram antes. Esse fato propiciou condições sociais favoráveis para a sobrevivência de algumas religiões africanas, com a formação de grupos de culto organizados.
Quando se fala em candomblé, geralmente a referência é o candomblé queto, ou da chamada "nação" queto, da Bahia, vertente em que predominam os orixás e ritos de iniciação de origem iorubá. Seus antigos terreiros são os mais conhecidos e prestigiados do Brasil: a Casa Branca do Engenho Velho, o candomblé do Alaketo, o Axé Opô Afonjá e o Gantois. As mães-de-santo que alcançaram grande prestígio e visibilidade na sociedade local têm sido dessas casas, como Pulquéria e Menininha, sua sobrinha-neta e sucessora no candomblé do Gantois; Olga, do terreiro do Alaketo; e Aninha, Senhora e Stella, do candomblé do Opô Afonjá. O candomblé queto tem tido grande influência sobre outras "nações", que têm incorporado muitas de suas práticas rituais. Sua língua ritual deriva do iorubá, mas o significado das palavras em grande parte se perdeu através do tempo, sendo hoje muito difícil traduzir os versos das cantigas sagradas e impossível manter conversação na língua do candomblé. Além do queto, as seguintes "nações" também são do tronco iorubá (ou nagô, como os povos iorubanos são também denominados): efã e ijexá na Bahia, nagô ou eba em Pernambuco, oió-ijexá ou batuque de nação no Rio Grande do Sul, mina-nagô no Maranhão, e a quase extinta "nação" xambá de Alagoas e Pernambuco.
O candomblé de "nação" angola, de origem banto, adotou o panteão dos orixás iorubás (embora os chame pelos nomes de seus esquecidos inquices, divindades bantos), assim como incorporou muitas das práticas iniciáticas da nação queto. Sua linguagem ritual, também intraduzível, originou-se predominantemente das línguas quimbundo e quicongo. Nessa "nação", tem fundamental importância o culto dos caboclos, que são espíritos de índios, considerados pelos antigos africanos como sendo os verdadeiros ancestrais brasileiros, portanto os que são dignos de culto no novo território em que foram confinados pela escravidão. O candomblé de caboclo é uma modalidade do angola centrado no culto exclusivo dos antepassados indígenas. Foi provavelmente o candomblé angola e o de caboclo que deram origem à umbanda. Há outras nações menores de origem banto, como a congo e a cambinda, hoje quase inteiramente absorvidas pela nação angola.
A nação jeje-mahin, do estado da Bahia, e a jeje-mina, do Maranhão, derivaram suas tradições e língua ritual do ewê-fon, ou jejes, como já eram chamados pelos nagôs, e suas entidades centrais são os voduns. As tradições rituais jejes foram muito importantes na formação dos candomblés com predominância iorubá.
Em nosso século nasceu a umbanda, que tem sido reiteradamente identificada como sendo a religião brasileira por excelência, pois, formada no Brasil, ela resulta do encontro de tradições africanas, espíritas e católicas (2). Ao contrário das religiões negras tradicionais que se constituíram como religiões de grupos negros, a umbanda surge como religião universal, isto é, dirigida a todos. A umbanda sempre procurou legitimar-se pelo apagamento de feições herdadas do candomblé, sua matriz negra, especialmente os traços referidos a modelos de comportamento e mentalidade que denotam a origem tribal e depois escrava, mantendo contudo essas marcas na constituição do panteão. Comparado ao do candomblé, seu processo de iniciação é muito mais simples e menos oneroso e seus rituais evitam e dispensam sacrifício de sangue. Os espíritos de caboclos e pretos-velhos manifestam-se nos corpos dos iniciados durante as cerimônias de transe para dançar e sobretudo orientar e curar aqueles que procuram por ajuda religiosa para a solução de seus males. A umbanda absorveu do kardecismo algo de seu apego às virtudes da caridade e do altruísmo, assim fazendo-se mais ocidental que as demais religiões do espectro afro-brasileiro; mas nunca completou o processo de ocidentalização, ficando a meio caminho entre ser religião ética, preocupada com a orientação moral da conduta, e religião mágica, voltada para a estrita manipulação sobrenatural do mundo.
Desde o início as religiões afro-brasileiras se formaram em sincretismo com o catolicismo, e em grau menor com religiões indígenas. O culto católico aos santos, numa dimensão popular politeísta, ajustou-se como uma luva ao culto dos panteões africanos. Com a umbanda, acrescentaram-se à vertente africana as contribuições do kardecismo francês, especialmente a idéia de comunicação com os espíritos dos mortos através do transe, com a finalidade de se praticar a caridade entre os dois mundos, pois os mortos devem ajudar os vivos sofredores, assim como os vivos devem ajudar os mortos a encontrarem, sempre pela prática da caridade, o caminho da paz eterna, segundo a doutrina de Kardec. A umbanda perdeu parte de suas raízes africanas e se espraiou por todas as regiões do país, sem limites de classe, raça, cor (Prandi, 1995). Mas não interferiu na identidade do candomblé, do qual se descolou, conquistando sua autonomia. E o candomblé também mudou. Até 20 ou 30 anos atrás, o candomblé era religião de negros e mulatos, confinado sobretudo na Bahia e Pernambuco, e de reduzidos grupos de descendentes de escravos localizados aqui e ali em distintas regiões do país. No rastro da umbanda, a partir dos anos 60 deste século, o candomblé passou a se oferecer como religião também para segmentos da população de origem não-africana.
A presença do negro na formação social do Brasil foi decisiva para dotar a cultura brasileira dum patrimônio mágico-religioso, desdobrado em inúmeras instituições e dimensões materiais e simbólicas, sagradas e profanas, de enorme importância para a identidade do país e sua civilização. No que diz respeito à religião especificamente, os cultos trazidos pelos africanos deram origem a uma variedade de manifestações que aqui encontraram conformação específica, através de uma multiplicidade sincrética resultante do contato das religiões dos negros com o catolicismo do branco, mediado ou propiciado pelas relações sociais assimétricas existentes entre eles, e também com as religiões indígenas e bem mais tarde, mas não menos significativamente, com o espiritismo kardecista.
Desde sua formação em solo brasileiro, as religiões de origem negra têm sido tributárias do catolicismo. Embora o negro, escravo ou liberto, tenha sido capaz de manter no Brasil dos séculos XVIII e XIX, e até hoje, muito de suas tradições religiosas, é fato que sua religião enfrentou-se desde logo com uma séria contradição: a própria estrutura social e familiar às quais a religião dava sentido aqui nunca se reproduziram. As religiões dos bantos, iorubás e fons são religiões de culto aos ancestrais, que se fundam nas famílias e suas linhagens.
O tecido social do negro escravo nada tinha a ver com família, grupos e estratos sociais dos africanos nas suas origens. Assim, a religião negra só parcialmente pôde se reproduzir aqui. A parte ritual da religião original mais importante para a vida cotidiana, constituída no culto aos antepassados familiares e da aldeia, pouco se refez, pois a família se perdeu, a tribo se perdeu. Na África, era o ancestral do povoado (egungum) que cuidava da ordem do grupo, resolvendo os conflitos e punindo os transgressores que punham em risco o equilíbrio coletivo. Quando as estruturas sociais foram dissolvidas pela escravidão, os antepassados perderam seu lugar privilegiado no culto. Sobreviveram marginalmente no novo contexto social e ritual. As divindades mais diretamente ligadas às forças da natureza, mais diretamente envolvidas na manipulação mágica do mundo, mais presentes na construção da identidade da pessoa, os orixás, divindades de culto genérico, estas sim vieram a ocupar o centro da nova religião negra em território brasileiro. Pois que sentido poderia fazer o controle da vida social para o negro escravo? Fora de suas assembléias religiosas, era o catolicismo do senhor a única fonte possível de ligação com o mundo coletivo projetado para fora do trabalho escravo e da senzala.
Se a religião negra, ainda que em sua reconstrução fragmentada, era capaz de dotar o negro de uma identidade negra, africana, de origem, que recuperava ritualmente a família, a tribo e a cidade, perdidas para sempre na diáspora, era através do catolicismo, contudo, que ele podia se encontrar e se mover no mundo real do dia-a-dia, na sociedade dos brancos dominadores, responsável pela garantia da sua existência, não importa em que condições de privação e dor. Qualquer tentativa de superação da condição escrava, como realidade ou como herança histórica, implicava primeiro a necessária inclusão no mundo branco. E logo passava a significar o imperativo de ser, sentir-se e parecer brasileiro. Nunca puderam ser brasileiros sem ser católicos. Podiam preservar suas crenças no estrito limite dos grupos familiares, muitas vezes reproduzindo simbolicamente a família e os laços familiares através da congregação religiosa, daí a origem dos terreiros e das famílias-de-santo. Mas a inserção no espaço maior exigia uma identidade nacional, por assim dizer, uma identidade que refletisse o conjunto geral da sociedade católica em expansão. O fim da escravidão, a formação da sociedade nacional, o extravasamento das populações pelas amplitudes geográficas, com a criação de possibilidades as mais diferentes, tudo isso só fez reforçar a importância do catolicismo para as populações negras. O próprio catolicismo, como cultura de inclusão, hegemônica, não fez oposições, que não pudessem ser vencidas, ao fato de o negro manter uma dupla ligação religiosa. Pois em São Luís, talvez o mais vivo e denso centro cultural dos sincretismos afro-católicos, não são apenas os devotos das religiões negras que são também católicos; católicas também são consideradas pelos seus fiéis as próprias divindades trazidas da África. As religiões afro-brasileiras, em suas origens, sempre foram devedoras e dependentes do catolicismo, ideológica e ritualmente. Só muito recentemente - quando a sociedade brasileira não precisa mais do catolicismo como a grande e única fonte de transcendência que possa legitimá-la e fornecer os controles valorativos da vida social -, as religiões de origem negra começaram a se desligar do catolicismo. Mas isso é um projeto de mudança de identidade que mal começou e que exige, antes, outras experiências de situar-se no mundo com mais liberdade e direitos de pertencimento (3).
Desobrigadas, desde o nascimento, das questões referentes à administração da justiça que pressupõe princípios universalistas e pactos coletivos acima dos desejos individuais, posto que isso era domínio exclusivo da religião geral da sociedade geral, isto é, o catolicismo; desinteressadas de conteúdos formadores da pessoa para o mundo profano, porque o modelo aqui é branco; alimentando o culto de deuses que se exteriorizam e se expressam especialmente através da forma, não é sem razão que as religiões afro-brasileiras desenvolveram um enorme senso ritual presidido por inigualável senso estético, capaz de transbordar os limites do sagrado para se impregnar nas expressões mais profanas que modelam a identidade nacional. Ser brasileiro agora é ser do samba, do "camarão ensopadinho com chuchu", do carnaval de avenida - que é tudo afro-brasileiro e nada absolutamente religioso. Os elementos da religião tradicional, ao serem assimilados pela cultura nacional, deixam de ser religiosos para serem simplesmente exóticos. E mesmo quando conteúdos religiosos, nessas circunstâncias, são mantidos por seus cultores, como o ebó para Exu que abre o desfile da grande escola de samba de prestígio universal, isso não tem nenhuma importância para a sociedade. Esse ebó, certamente privativo de um grupo que busca firmar sua identidade religiosa singular, não se publiciza a não ser como ingrediente estético.

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