quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Deuses africanos no Brasil” é o Capítulo I do livro


 Herdeiras do Axé

de

Reginaldo Prandi

(São Paulo, Hucitec, 1997, páginas 1-50)

Axé é força vital, energia, princípio da vida, força sagrada dos orixás. Axé é o nome que se dá às partes dos animais que contêm essas forças da natureza viva, que também estão nas folhas, sementes e nos frutos sagrados. Axé é bênção, cumprimento, votos de boa-sorte e sinônimo de Amém. Axé é poder. Axé é o conjunto material de objetos que representam os deuses quando estes são assentados, fixados nos seus altares particulares para ser cultuados. São as pedras e os ferros dos orixás, suas representações materiais, símbolos de uma sacralidade tangível e imediata. Axé é carisma, é sabedoria nas coisas-do-santo, é senioridade. Axé se tem, se usa, se gasta, se repõe, se acumula. Axé é origem, é a raiz que vem dos antepassados, é a comunidade do terreiro. Os grandes portadores de axé, que são as veneráveis mães e os veneráveis pais-de-santo, podem transmitir axé pela imposição das mãos; pela saliva, que com a palavra sai da boca; pelo suor do rosto, que os velhos orixás em transe limpam de sua testa com as mãos e, carinhosamente, esfregam nas faces dos filhos prediletos. Axé se ganha e se perde. (Extraído de Reginaldo Prandi, Os candomblés de São Paulo.)

uma apresentação do candomblé*


Reginaldo Prandi



I: Religiões populares no Brasil

O catolicismo tem sido historicamente a religião majoritária do Brasil, cabendo a outras fés o lugar de religiões minoritárias, mas nem por isso sem importância no quadro das religiões e da cultura, sobretudo no século atual. Neste segundo grupo estão as chamadas religiões afro-brasileiras[1] , as quais até os anos 1930 poderiam ser incluídas na categoria das religiões étnicas, religiões de preservação de patrimônios culturais dos antigos escravos africanos e seus descendentes.  Estas religiões formaram-se em diferentes áreas do Brasil com diferentes ritos e nomes locais derivados de tradições africanas diversas: candomblé na Bahia[2], xangô em Pernambuco e Alagoas[3], tambor de mina no Maranhão e Pará[4], batuque no Rio Grande do Sul[5] e macumba no Rio de Janeiro[6].
A organização das religiões negras no Brasil deu-se bastante recentemente. Uma vez que as últimas levas de africanos trazidos para o Novo Mundo durante o período final da escravidão (últimas décadas do século 19) foram fixadas sobretudo nas cidades e em ocupações urbanas, os africanos  desse período puderam  viver no Brasil em maior contato uns com os outros, físico e socialmente, com maior mobilidade e, de certo modo, liberdade de movimentos, num processo de interação que não conheceram antes. Este fato propiciou condições sociais favoráveis para a sobrevivência de algumas religiões africanas, com a formação de grupos de culto organizados.
Por outro lado, no final do século passado, foram introduzidas no País algumas denominações protestantes européias e norte-americanas.  Essas religiões floresceram, assim como espiritismo kardecista francês aqui chegado também no final do século passado, mas o catolicismo continuou sendo a preferência de mais de 90% da população brasileira até os anos 1950, embora na região mais industrializada do país, o Sudeste, a porcentagem de católicos tenha sido menor, com um incremento mais rápido no número de protestantes, kardecistas e também seguidores da umbanda, religião afro-brasileira emergida nos anos 1930 nas áreas mais urbanizadas do País, e que, a despeito de suas origens negras, nunca se mostrou como religião voltada para a preservação das marcas africanas originais.
O quadro religioso no Brasil de hoje caracteriza-se por processo de conversão complexo e dinâmico, com a incorporação e mesmo criação de algumas novas religiões, às vezes com a passagem do converso por várias possibilidades de adesão.  Os grupos de religiões mais importantes em termos de números de seguidores hoje são: o catolicismo, em suas ambas versões de religião tradicional e renovada; os evangélicos, que apresentam múltiplas facetas entre históricos e pentecostais, agora também se oferecendo numa nova e inusitada versão, o neopentecostalismo (Rolim, 1985; Mariano, 1995); os espíritas kardecistas, e um diverso conjunto de religiões afro-brasileiras.  Entre os católicos renovados sobressaem-se as Comunidades Eclesiais de Base (Pierucci, 1983) e o novo Movimento de Renovação Carismática (Prandi, 1991b), movimentos que se opõem doutrinariamente: as CEBs mais preocupadas com questões de justiça social e mais envolvidas na política, os carismáticos mais interessados no indivíduo e conservadoramente avessos a temas de consciência social. Estimativas recentes indicam a presença de 75% de católicos (os carismáticos são 4% e os das CEBs, 2% da população), 13% de evangélicos (3% históricos e 10% pentecostais), 4% de kardecistas e 1,5% de afro-brasileiros (Pierucci & Prandi, 1995).
Dessas religiões, a umbanda tem sido reiteradamente identificada como sendo a religião brasileira por excelência, pois, nascida no Brasil, ela resulta do encontro de tradições africanas, espíritas e católicas (Camargo, 1961; Concone, 1987; Ortiz, 1978). Como religião universal, isto é, dirigida a todos, a umbanda sempre procurou legitimar-se pelo apagamento de feições herdadas do candomblé, sua matriz negra, especialmente os traços referidos a modelos de comportamento e mentalidade que denotam a origem tribal e depois escrava, mantendo contudo estas marcas na constituição do panteão. Comparado ao do candomblé, seu processo de iniciação é muito mais simples e menos oneroso e seus rituais evitam e dispensam sacrifício de sangue.  Os espíritos de caboclos e pretos-velhos manifestam-se nos corpos dos iniciados durante as cerimônias de transe para dançar e sobretudo orientar e curar aqueles que procuram por ajuda religiosa para a solução de seus males. A umbanda absorveu do kardecismo algo de seu apego às virtudes da caridade e do altruísmo, assim fazendo-se mais ocidental que as demais religiões do espectro afro-brasileiro, mas nunca completou este processo de ocidentalização, ficando a meio caminho entre ser religião ética, preocupada com a orientação moral da conduta, e religião mágica, voltada para a estrita manipulação do mundo.
Desde o início as religiões afro-brasileiras se formaram em sincretismo com o catolicismo, e em grau menor com religiões indígenas. O culto católico aos santos, numa dimensão popular politeísta, ajustou-se como uma luva ao culto dos panteões africanos (Valente, 1977; S. Ferretti, 1995). Com a umbanda, acrescentaram-se à vertente africana as contribuições do kardecismo francês, especialmente a idéia de comunicação com os espíritos dos mortos através do transe, com a finalidade de se praticar a caridade entre os dois mundos, pois os mortos devem ajudar os vivos sofredores, assim como os vivos devem ajudar os mortos a encontrar, sempre pela prática da caridade, o caminho da paz eterna, segundo a doutrina de Kardec. A umbanda perdeu parte de suas raízes africanas, mas se espraiou por todas a regiões do País, sem limites de classe, raça, cor (ver Capítulo II). Mas não interferiu na identidade do candomblé, do qual se descolou, conquistando sua autonomia.  Mas o candomblé também mudou.  Até 20 ou 30 anos atrás, o candomblé era religião de negros e mulatos, confinado sobretudo na Bahia e Pernambuco, e de reduzidos grupos de descendentes de escravos cristalizados aqui e ali em distintas regiões do País. No rastro da umbanda, a partir dos anos 1960, o candomblé passou a se oferecer como religião também para segmentos da população de origem não-africana.

II: Candomblé nos dias de hoje

Por volta de 1950, a umbanda já tinha se consolidado como religião abertas a todos, não importando as distinções de raça, origem social, étnica e geográfica. Por ter a umbanda desenvolvido sua própria visão de mundo, bricolage européia-africana-indígena, símbolo das próprias origens brasileiras, ela pode se apresentar como fonte de transcendência capaz de substituir o velho catolicismo ou então juntar-se a ele como veículo de renovação do sentido religioso da vida.  Depois de ver consolidados os seus mais centrais aspectos, ainda no Rio de Janeiro e São Paulo, a umbanda espalhou-se por todo o País, podendo ser também agora encontrada vicejando na Argentina, no Uruguai e outros Países latino-americanos, além de Portugal (Oro, 1993; Frigerio & Carozzi, 1993; Pi Hugarte, 1993; Prandi, 1991c; Pollak-Eltz, 1993; Pordeus, 1995).
Durante os anos 1960, alguma coisa surpreendente começou a acontecer.  Com a larga migração do Nordeste em busca das grandes cidades industrializadas no Sudeste, o candomblé começou a penetrar o bem estabelecido território da umbanda, e velhos umbandistas começaram e se iniciar no candomblé, muitos deles abandonando os ritos da umbanda para se estabelecer como pais e mães-de-santo das modalidades mais tradicionais de culto aos orixás. Neste movimento, a umbanda é remetida de novo ao candomblé, sua velha e "verdadeira" raiz original, considerada pelos novos seguidores como sendo mais misteriosa, mais forte, mais poderosa que sua moderna e embranquecida descendente.
Nesse período da história brasileira, as velhas tradições até então preservadas na Bahia e outros pontos do País encontraram excelentes condições econômicas para se reproduzirem e se multiplicarem mais ao sul; o alto custo dos ritos deixou de ser um constrangimento que as pudesse conter. E mais, nesse período, importantes movimentos de classe média buscavam por aquilo que poderia ser tomado como as raízes originais da cultura brasileira. Intelectuais, poetas, estudantes, escritores e artistas participaram desta empreitada, que tantas vezes foi bater à porta das velhas casas de  candomblé da Bahia.  Ir a Salvador para se ter o destino lido nos búzios pelas mães-de-santo tornou-se um must para muitos, uma necessidade que preenchia o vazio aberto por um estilo de vida moderno e secularizado tão enfaticamente constituído com as mudanças sociais que demarcavam o jeito de viver nas cidades industrializadas do Sudeste, estilo de vida já, quem sabe?, eivado de tantas desilusões.
O candomblé encontrou condições sociais, econômicas e culturais muito favoráveis para o seu renascimento num novo território, em que a presença de instituições de origem negra até então pouco contavam.  Nos novos terreiros de orixás que foram se criando então, entretanto, podiam ser encontrados pobres de todas as origens étnicas e raciais. Eles se interessaram pelo candomblé.  E os terreiros cresceram às centenas.
O termo candomblé designe vários ritos com diferentes ênfases culturais, aos quais os seguidores dão o nome de "nações" (Lima, 1984).  Basicamente, as culturas africanas que foram as principais fontes culturais para as atuais "nações" de candomblé vieram da área cultural banto (onde hoje estão os países da Angola, Congo, Gabão, Zaire e Moçambique) e da região sudanesa do Golfo da Guiné, que contribuiu com os iorubás e os ewê-fons, circunscritos aos atuais território da Nigéria e Benin.  Mas estas origens na verdade se interpenetram tanto no Brasil como na origem africana.
Na chamada "nação" queto, na Bahia, predominam os orixás e ritos de iniciação de origem iorubá. Quando se fala em candomblé, geralmente a referência é o candomblé queto e seus antigos terreiros são os mais conhecidos: a Casa Branca do Engenho Velho, o candomblé do Alaketo, o Axé Opô Afonjá e o Gantois.  As mães-de-santo de maior prestígio e de visibilidade que ultrapassou de muitos as portas dos candomblé têm sido destas casas, como Pulquéria e Menininha, ambas do Gantois,  Olga, do Alaketo,  e Aninha, Senhora e Stella, do Opô Afonjá.  O candomblé queto tem tido grande influência sobre outras "nações", que têm incorporado muitas de suas prática rituais.  Sua língua ritual deriva do iorubá, mas o significado das palavras em grande parte se perdeu através do tempo, sendo hoje muito difícil traduzir os versos das cantigas sagradas e impossível manter conversação na língua do candomblé.  Além do queto, as seguintes "nações" também são do tronco iorubá (ou nagô, como os povos iorubanos são também denominados): efã e ijexá na Bahia, nagô ou eba em Pernambuco, oió-ijexá ou batuque de nação no Rio Grande do Sul,  mina-nagô no Maranhão, e a quase extinta "nação" xambá de Alagoas e Pernambuco.
A "nação" angola, de origem banto, adotou o panteão dos orixás iorubás (embora os chame pelos nomes de seus esquecidos inquices, divindades bantos — ver Anexo), assim como incorporou muitas das práticas iniciáticas da nação queto. Sua linguagem ritual, também intraduzível, originou-se predominantemente das línguas quimbundo e quicongo. Nesta "nação", tem fundamental importância o culto dos caboclos, que são espíritos de índios, considerados pelos antigos africanos como sendo os verdadeiros ancestrais brasileiros, portanto os que são dignos de culto no novo território a que foram confinados pela escravidão. O candomblé de caboclo é uma modalidade do angola centrado no culto exclusivo dos antepassados indígenas (Santos, 1992; M. Ferretti, 1994). Foram provavelmente o candomblé angola e o de caboclo que deram origem à umbanda. Há outras nações menores de origem banto, como a congo e a cambinda, hoje quase inteiramente absorvidas pela nação angola.
A nação jeje-mahin, do estado da Bahia, e a jeje-mina, do Maranhão, derivaram suas tradições e língua ritual do ewê-fon, ou jejes, como já eram chamados pelos nagôs, e suas entidades centrais são os voduns. As tradições rituais jejes foram muito importantes na formação dos candomblés com predominância iorubá.

Iniciação no candomblé queto

O sacerdócio e organização dos ritos para o culto dos orixás são complexos, com todo um aprendizado que administra os padrões culturais de transe, pelo qual os deuses se manifestam no corpo de seus iniciados durante as cerimônias para serem admirados, louvados, cultuados. Os iniciados, filhos e filhas-de-santo (iaô, em linguagem ritual), também são popularmente denominados "cavalos dos deuses" uma vez que o transe consiste basicamente em mecanismo pelo qual cada filho ou filha se deixa cavalgar pela divindade, que se apropria do corpo e da mente do iniciado, num modelo de transe inconsciente bem diferente daquele do kardecismo, em que o médium, mesmo em transe, deve sempre permanecer atento à presença do espírito. O processo de se transformar num "cavalo" é uma estrada longa, difícil e cara, cujos estágios na "nação" queto podem ser assim sumariados:
Para começar, a mãe-de-santo deve determinar, através do jogo de búzios, qual é o orixá dono da cabeça daquele indivíduo (Braga, 1988). Ele ou ela recebe então um fio de contas sacralizado, cujas cores simbolizam o seu orixá (ver Anexo), dando-se início a um longo aprendizado que acompanhará o mesmo por toda a vida. A primeira cerimônia privada a que a noviça (abiã) é submetida consiste num sacrifício votivo à sua própria cabeça (ebori), para que a cabeça possa se fortalecer e estar preparada para algum dia receber o orixá no transe de possessão. Para se iniciar como cavalo dos deuses, a abiã precisa juntar dinheiro suficiente para cobrir os gastos com as oferendas (animais e ampla variedade de alimentos e objetos), roupas cerimoniais, utensílios e adornos rituais e demais despesas suas, da família-de-santo, e eventualmente de sua própria família durante o período de reclusão iniciática em que não estará, evidentemente, disponível para o trabalho no mundo profano.
Como parte da iniciação, a noviça permanece em reclusão no terreiro por um número em torno de 21 dias. Na fase final da reclusão, uma representação material do orixá do iniciado (assentamento ou ibá-orixá) é lavada com um preparado de folhas sagradas trituradas (amassi). A cabeça da noviça é raspada e pintada, assim preparada para receber o orixá no curso do sacrifício então oferecido (orô). Dependendo do orixá, alguns dos animais seguintes podem ser oferecidos: cabritos, ovelhas, pombas, galinhas, galos, caramujos. O sangue é derramado sobre a cabeça da noviça, no assentamento do orixá e no chão do terreiro, criando este sacrifício um laço sagrado entre a noviça, o seu orixá e a comunidade de culto, da qual a mãe-de-santo é a cabeça. Durante a etapa das cerimônias iniciáticas em que a noviça é apresentada pela primeira vez à comunidade, seu orixá grita seu nome, fazendo-se assim reconhecer por todos, completando-se a iniciação como iaô (iniciada jovem que "recebe" orixá). O orixá está pronto para ser festejado e para isso é vestido e paramentado, e levado para junto dos atabaques, para dançar, dançar e dançar.
No candomblé sempre estão presentes o ritmo dos tambores, os cantos, a dança e a comida (Motta, 1991). Uma festa de louvor aos orixás (toque) sempre se encerra com um grande banquete comunitário (ajeum, que significa "vamos comer"), preparado com carne dos animais sacrificados. O novo filho ou filha-de-santo deverá oferecer sacrifícios e cerimônias festivas ao final do primeiro, terceiro e sétimo ano de sua iniciação. No sétimo aniversário, recebe o grau de senioridade (ebômi, que significa "meu irmão mais velho"), estando ritualmente autorizado a abrir sua própria casa de culto. Cerimônias sacrificiais são também oferecidas em outras etapas da vida,  como no vigésimo primeiro aniversário de iniciação.  Quando o ebômi morre, rituais fúnebres (axexê) são realizados pela comunidade para que o orixá fixado na cabeça durante a primeira fase da iniciação possa desligar-se do corpo e retornar ao mundo paralelo dos deuses (orum) e para que o espírito da pessoa morta (egum) liberte-se daquele corpo, para renascer um dia  e poder de novo gozar dos prazeres deste mundo.

Ritual e ética

O candomblé opera em um contexto ético no qual a noção judáico-cristã de pecado não faz sentido. A diferença entre o bem e o mal depende basicamente da relação entre o seguidor e seu deus pessoal, o orixá. Não há um sistema de moralidade referido ao bem-estar da coletividade humana, pautando-se o que é certo ou errado na relação entre cada indivíduo e seu orixá particular.  A ênfase do candomblé está no rito e na iniciação, que, como se viu brevemente, é quase interminável, gradual e secreta.
O culto demanda sacrifício de sangue animal, oferta de alimentos e vários ingredientes. A carne dos animais abatidos nos sacrifícios votivos é comida pelos membros da comunidade religiosa, enquanto o sangue e certas partes dos animais, como patas e cabeça, órgãos internos e costelas, são oferecidas aos orixás. Somente iniciados têm acesso a estas cerimônias, conduzidas em espaços privativos denominados quartos-de-santo. Uma vez que o aprendizado religioso sempre se dá longe dos olhos do público, a religião acaba  por se recobrir de uma aura de sombras e mistérios, embora todas as danças, que são o ponto alto das celebrações, ocorram sempre no barracão, que é o espaço aberto ao público. As celebrações de barracão, os toques,  consistem numa seqüência de danças, em que, um por um, são honrados todos os orixás, cada um se manifestando no corpo de seus filhos e filhas, sendo vestidos com roupas de cores específicas, usando nas mãos ferramentas e objetos particulares a cada um deles, expressando-se em gestos e passos que reproduzem simbolicamente cenas de suas biografias míticas. Essa seqüência de música e dança, sempre ao som dos tambores (chamados rum, rumpi e lé) é designada xirê, que em iorubá significa "vamos dançar". O lado público do candomblé é sempre festivo, bonito, esplendoroso,  esteticamente exagerado para os padrões europeus e extrovertido. 
Para o grande público, desatento para o difícil lado da iniciação, o candomblé é visto como um grande palco em que se reproduzem tradições afro-brasileiras igualmente presentes, em menor grau,  em outras esferas da cultura, como a música e a escola de samba. Para o não iniciado, dificilmente se concebe que a cerimônia de celebração no candomblé seja algo mais que um eterno dançar dos deuses africanos.

Seguidores e clientes

O candomblé atende a uma grande demanda por serviços mágico-religiosos de uma larga clientela que não necessariamente toma parte em qualquer aspecto das atividades do culto. Os clientes procuram a mãe ou pai-de-santo para o jogo de búzios, o oráculo do candomblé, através do qual problemas são desvendados e oferendas são prescritas para sua solução. O cliente paga pelo jogo de búzios e pelo sacrifício propiciatório (ebó) eventualmente recomendado. O cliente em geral fica sabendo qual é o orixá dono de sua cabeça e pode mesmo comparecer às festas em que se faz a celebração de seu orixá, podendo colaborar com algum dinheiro no preparo das festividades, embora não sele nenhum compromisso com a religião. O cliente sabe quase nada sobre o processo iniciático e nunca toma parte nele. Entretanto, ele tem uma dupla importância: antes de mais nada, sua demanda por serviços ajuda a legitimar o terreiro e o grupo religioso em termos sociais. Segundo, é da clientela que provém, na maioria dos terreiros, uma substancial parte dos fundos necessários para as despesas com as atividades sacrificiais.  Comumente, sacerdotes e sacerdotisas do candomblé que adquirem alto grau de prestígio na sociedade inclusiva gostam de nomear, entre seus clientes, figuras importantes dos mais diversos segmentos da sociedade.
Devotos das religiões afro-brasileiras podem cultuar também outras entidades que não os orixás africanos, como os caboclos (espíritos de índios brasileiros) e encantados (humanos que teriam vivido em outras épocas e outros países). Durante o transe ritual, os caboclos conversam com seus seguidores e amigos, oferecendo conselhos e fórmulas mágicas para o tratamento de todos os tipos de problemas. A organização dos panteões de divindades africanas nos terreiros varia de acordo com cada nação de candomblé (Santos, 1992; M. Ferretti, 1993).  Caboclos e pretos-velhos (espíritos de escravos) são centrais na umbanda, em que estas entidades têm papel mais importante no cotidiano da religião do que os próprios orixás.

III: Comportamento humano como herança dos orixás

Segundo o candomblé, cada pessoa pertence a um deus determinado, que é o senhor de sua cabeça e mente e de quem herda características físicas e de personalidade.  É prerrogativa religiosa do pai ou mãe-de-santo descobrir esta origem mítica através do jogo de búzios. Esse conhecimento é absolutamente imperativo no processo de iniciação de novos devotos e mesmo para se fazerem previsões do futuro para os clientes e resolver seus problemas. Embora na África haja registro de culto a cerca de 400 orixás, apenas duas dezenas deles sobreviveram no Brasil. A cada um destes cabe o papel de reger e controlar forças da natureza e aspectos do mundo, da sociedade e da pessoa humana. Cada um tem suas próprias características, elementos naturais, cores simbólicas, vestuário, músicas, alimentos, bebidas, além de se caracterizar por ênfase em certos traços de personalidade, desejos, defeitos, etc. (ver Anexo). Nenhum orixá é nem inteiramente bom, nem inteiramente mau. Noções ocidentais de bem e mal estão ausentes da religião dos orixás no Brasil. E os devotos acreditam que os homens e mulheres herdam muitos dos atributos de personalidade de seus orixás, de modo que em muitas situações a conduta de alguém pode ser espelhada em passagens míticas que relatam as aventuras dos orixás. Isto evidentemente legitima, aos olhos da comunidade de culto, tanto as realizações como as faltas de cada um.
Vejamos abreviadamente algumas das características de personalidade mais usualmente atribuídas aos orixás por seus seguidores[7]:
Exu — Deus mensageiro, divindade trickster, o trapaceiro. Em qualquer cerimônia é sempre o primeiro a ser homenageado, para se evitar que se enraiveça e atrapalhe o ritual.  Guardião das encruzilhadas e das portas da rua. Sincretizado com o Diabo católico. Seus símbolos são um porrete fálico e tridentes de ferro. Os seguidores acreditam que as pessoas consagradas a Exu são inteligentes, sexy, rápidas, carnais, licenciosas, quentes, eróticas e sujas. Filhos de Exu gostam de comer e beber em demasia. Não se deve confiar nunca num filho ou numa filha de Exu. Eles são os melhores, mas eles decidem quando o querem ser. Não são dados ao casamento, gostam de andar sozinhos pelas ruas, bebendo e observando os outros para apanhá-los desprevenidos. Deve-se pagar a Exu com dinheiro, comida, atenção sempre que se precise de um favor dele. Como o pai, filhos de Exu nunca fazem nada sem paga. A saudação a Exu é Laroyê!
Ogum — Deus da guerra, do ferro, da metalurgia e da tecnologia. Sincretizado com Santo Antônio e São Jorge. É o orixá que tem o poder de abrir os caminhos, facilitando viagens e progressos na vida. Os estereótipos mostram os filhos de Ogum como teimosos, apaixonados e com certa frieza racional. Eles são muito trabalhadores, especialmente moldados para o trabalho manual e para as atividades técnicas. Embora eles usualmente façam qualquer coisa por um amigo, os filhos e filhas de Ogum não sabem amar sem machucar: despedaçam corações. Acredita-se que sejam muito bem dotados sexualmente, tanto quanto os filhos de Exu, irmão de Ogum. Embora eles possam ter muitos interesses, os filhos de Ogum preferem as coisas práticas, detestando qualquer trabalho intelectual. Eles dão bons guerreiros, policiais, soldados, mecânicos, técnicos.  Saudação: Ogunhê!
Oxóssi  Deus da caça. Sincretizado com São Jorge e São Sebastião. Orixá da fartura. Seus filhos são elegantes, graciosos, xeretas, curiosos e solitários. Embora dêem bons pais e boas mães, têm sempre dificuldade com o ser amado. São amigáveis, pacientes e muitas vezes ingênuos. Os filhos de Oxóssi têm aparência jovial e parece que estão sempre à procura de alguma coisa. Não conseguem ser monogâmicos. Têm de caçar noite e dia. Por isso são considerados irresponsáveis. De fato, eles se sentem livres para quebrar qualquer compromisso que não lhes agrade mais. Dificilmente eles se sentem obrigados a comparecer a um encontro marcado, quando outra coisa mais interessante cruza o seu caminho.  Okê arô!
Obaluaiê ou Omulu — Deus da varíola, das pragas e doenças. É relacionado com todo o tipo de mal físico e suas curas. Associado aos cemitérios, solos e subsolos. Sincretizado com São Lázaro e São Roque. Seus filhos aparentam um aspecto deprimido. São negativos, pessimistas, inspirando pena. Eles parecem pouco amigos, mas é porque são tímidos e envergonhados. Seja amigo de um deles e você descobrirá que tudo o que eles precisam para ser as melhores pessoas do mundo é de um pouco de atenção e uma pitada de amor.  Quando envelhecem,  alguns se tornam sábios, outros parecem completos idiotas. É que apenas querem ficar sozinhos. Atotô!
Xangô — Deus do trovão e da justiça. Sincretizado com São Jerônimo. Seus filhos se dão bem em atividades e assuntos que envolvem justiça, negócios e burocracia. Sentem que nasceram para ser reis e rainhas, mas usualmente acabam se comportando como plebeus. São teimosos, resolutos e glutões; gananciosos por dinheiro, comida e poder. Uma pessoa de Xangô gosta de se mostrar com muitos amantes, embora não sejam reconhecidos como pessoas capazes de grandes proezas sexuais. Vivem para lutar e para envolver as pessoas que o cercam na  sua própria e interminável guerra pessoal. Gostam de criar suas famílias, protegendo seus rebentos além do usual. Por isso são muito bons amigos e excelentes pais. Kaô kabiesile!
Oxum — Deusa da água doce, do ouro, da fertilidade e do amor. Sincretizada com Nossa Senhora das Candeias. Senhora da vaidade, ela foi a esposa favorita de Xangô. Os filhos e filhas de Oxum são pessoas atrativas, sedutoras, manhosas e insinuantes. Elas sabem como manobrar os seus amores; são boas na feitiçaria e na previsão do futuro. Adoram adivinhar segredos e mistérios. São orgulhosas da beleza que pensam ter por direito natural. Podem ser muito vaidosas, atrevidas e arrogantes. Dizem que sabem tudo do amor, do namoro e do casamento, mas têm muita dificuldade em criar seus filhos adequadamente, muitas vezes até se esquecendo que eles existem. Não gostam da pobreza e nem da solidão. Saudação: Ora yeyê ô!
Iansã ou Oiá — Deusa dos raios, dos ventos e das tempestades. É a esposa de Xangô que o acompanha na guerra. Orixá guerreira que leva a alma dos mortos ao outro mundo. Sincretizada com Santa Bárbara. Seus filhos e filhas são mais dotados para a prática do sexo do que para o cultivo do amor. Deusa do erotismo, ela é uma espécie de entidade feminista. As pessoas de Iansã são brilhantes, conversadoras, espalhafatosas, bocudas e corajosas. Detestam fazer pequenos serviços em favor dos outros, pois sentem que isso contraria sua majestade. Elas podem dar a vida pela pessoa amada, mas jamais perdoam uma traição. Eparrei!
Iemanjá — Deusa dos grandes rios, dos mares, dos oceanos. Cultuada no Brasil como mãe de muitos orixás. Sincretizada com Nossa Senhora da Conceição. Freqüentemente representada por uma sereia, sua estátua pode ser vista em quase todas as cidades ao longo da costa brasileira. Ela é a grande mãe, dos orixás e do Brasil, a quem protege como padroeira, sendo igualmente Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Os filhos e filhas de Iemanjá tornam-se bons pais e boas mães. Protegem seus filhos como leões. Seu maior defeito é falar demais; são incapazes de guardar um segredo. Gostam muito do trabalho e de derrotar a pobreza. Fisicamente são pessoas pouco atraentes, mulheres de bustos exagerados, e sua presença entre outras pessoas é sempre pálida. Saudação: Odoyá!
Oxalá — Deus da criação. Sincretizado com Jesus Cristo. Seus seguidores vestem-se de branco às sextas-feiras. É sempre o último a ser louvado durante as cerimônias religiosos afro-brasileiras; é reverenciado pelos demais orixás. Como criador, ele modelou os primeiros seres humanos. Quando se revela no transe, apresenta-se de duas formas: o velho Oxalufã, cansado e encurvado, movendo-se vagarosamente, quase incapaz de dançar; o jovem Oxaguiã,  dançando rápido como o guerreiro. Por ter inventado o pilão para preparar o inhame como seu prato favorito, Oxaguiã é considerado o criador da cultura material. Ao invés de sacrifício de sangue de animais quentes, Oxalá prefere o sangue frio dos caracóis. Os filhos de Oxalá gostam do poder, do trabalho criativo, apreciam ser bem tratados e mostram-se mandões e determinados na relação com os outros. São melhores no amor do que no sexo, gostam muito de aprender e de ensinar, mas nunca ensinam a lição completamente. São calados e chatos. Gostam de desafios, são muito bons amigos e muito bons adversários aos que se atrevem a se opor a eles. Povo de Oxalá nunca desiste. Epa Babá!


"Tal pai, tal filho." Assim, cada orixá tem um tipo mítico que é religiosamente atribuído aos seus descendentes, seus filhos e filhas.  Através de mitos, a religião fornece padrões de comportamento que modelam, reforçam e legitimam o comportamento dos fiéis (Verger, 1957, 1985b).
De fato, o seguidor do candomblé pode simplesmente tomar os atributos do seu orixá como se fossem os seus próprios e tentar se parecer com ele, ou reconhecer através dos atributos da divindade bases que justificam sua conduta.  Os padrões apresentados pelos mitos dos orixás podem assim ser usados como modelo a ser seguido, ou como validação social para um modo de conduta já presente.  Um iniciado pode, ao familiarizar-se com seus estereótipos míticos, identificar-se com eles e reforçar certos comportamento, ou simplesmente chamar a atenção dos demais para este ou aquele traço que sela sua identidade mítica.  Mudar ou não o comportamento não é importante; o que conta é sentir-se próximo do modelo divino.
Além de seu orixá dono da cabeça, acredita-se que cada pessoa tem um segundo orixá, que atua como uma divindade associada (juntó) que complementa o primeiro.  Diz-se, por exemplo: "sou filho de Oxalá e Iemanjá".  Geralmente, se o primeiro é masculino, o segundo é feminino, e vice-versa, como se cada um tivesse pai e mãe.  A segunda divindade tem papel importante na definição do comportamento, permitindo opera-se com combinações muito ricas.  Como cada orixá particular da pessoa deriva de uma qualidade do orixá geral, que pode ser o orixá em idade jovem ou já idoso, ou o orixá em tempo de paz ou de guerra, como rei ou como súdito etc. etc., a variações que servem como modelos são quase inesgotáveis.
Às vezes, quando certas características incontestes de um orixá não se ajustam a uma pessoa tida como seu filho, não é incomum nos meios do candomblé duvidar-se daquela filiação, suspeitando-se que aquele iniciado está com o "santo errado", ou seja, mal identificado pela mãe ou pai-de-santo responsável pela iniciação.  Neste caso, o verdadeiro orixá tem que ser descoberto e o processo de iniciação reordenado.  Pode acontecer também a suspeita de que o santo está certo, mas que certas passagens míticas de sua biografia, que explicariam aqueles comportamentos, estão perdidas.  No candomblé sempre se tem a idéia de que parte do conhecimento mítico e ritual foi perdido na transposição da África para o Brasil, e de que em algum lugar existe uma verdade perdida, um conhecimento esquecido, uma revelação escondida. Pode-se mudar de santo, ou encetar interminável busca deste conhecimento "faltante", busca que vai de terreiro em terreiro, de cidade em cidade, na rota final para Salvador — reconhecidamente o grande centro do conhecimento sacerdotal, do axé —, e às vezes até a África e não raro à mera etnografia acadêmica.  Reconhece-se que falta alguma coisa que precisa ser recuperada, completada.  A construção da religião, de seus deuses, símbolos e significados estará sempre longe de ter se completado. Os seguidores, evidentemente, nunca se dão conta disso.

IV: Religiões éticas e religiões mágicas

O candomblé é uma religião basicamente ritual e a-ética, que — talvez por isso mesmo — veio a se constituir como uma alternativa sacral importante para diferentes segmentos sociais que vivem numa sociedade como a nossa, em que ética, código moral e normas de comportamento estritas podem valer pouco, ou comportar valores muito diferentes.
Nas religiões éticas, a mística extática, a experiência religiosa do transe (que é o caso do candomblé), dá lugar ao experimentar a idéia de dever, retribuição e piedade para com o próximo, que é o fundamento religioso — e da religião — do modo de vida, a razão de existência e o meio de salvação. A transgressão deixa de estar relacionada com a impropriedade ritual para ser a transgressão de um princípio, ético, normativo. Nesse tipo, a religião é fonte e guardiã da moralidade entre os homens, já que deus é a potência ética plena e em si. Nas religiões mágicas, ao contrário,  não há a idéia de salvação, a de busca necessária de um outro mundo em que a corrupção está superada, mas sim a procura de interferência neste mundo presente através do uso de forças sagradas que vêm, elas sim, do outro mundo. Nesta classe de religiões mágicas e rituais podemos perfeitamente enxergar o candomblé: "Seus deuses são fortes, com paixões análogas às dos homens, alternadamente valentes ou pérfidos, amigos e inimigos entre si e contra os homens, mas em todo caso inteiramente desprovidos de moralidade, e, tanto quanto os homens, passíveis de suborno, mediante o sacrifício, e coagidos por procedimentos mágicos que fazem com que os homens venham a se tornar, pelo conhecimento que estes acabam tendo dos deuses todos, mais fortes do que os próprios deuses"  (Weber, 1969, v.2: 909). Esses deuses, que são tantos, e nem mesmo se conhecem entre si, mas que são conhecidos pelo sacerdote-feiticeiro, que pode, inclusive, jogar um contra o outro para obter favores para os homens, esses deuses nunca chegam a ser potências éticas que exigem e recompensam o bem e castigam o mal; eles estão preocupados com a sua própria sobrevivência e, para isso, com o cuidado de seus adeptos particulares.
Daí as religiões mágicas não se caracterizarem pela existência de um pacto geral de luta do bem contra o mal. Nelas, o sacerdócio e o cumprimento de prescrições rituais têm finalidade meramente utilitária de manipulação do mundo natural e não natural, de exercício de poder sobre forças e entidades sobrenaturais maléficas e demoníacas, de ataque e defesa em relação à ação do outro, que é sempre um inimigo potencial, um oponente. Não há uma teodicéia capaz de nuclear a religião e nem desenvolver especulações éticas sobre a ordem cósmica, mesmo porque a religião — no caso do candomblé — já se desenvolveu como uma colcha de retalhos, fragmentos cuja unidade vem sendo ainda buscada por alguns de seus adeptos que se põem esta questão da explicação da ordem cósmica, ainda que num plano que precede o encontro de um fim transcendente, e que se ampara numa etnografia que relativisa as culturas e legitima como igualmente uniorganizadoras do cosmo as diferentes formas de religião. Por exemplo, Juana dos Santos, em Os nagô e a morte (1986), parte de uma base empírica oferecida por suas pesquisas no Brasil e na África, e com uma reinterpretação apoiada na etnografia, cria, no papel, uma religião que não se pode encontrar nem no Brasil nem na África, propondo para cada dimensão ritual da religião que ela reconstitui significados que procuram dar às partes o sentido de um todo, dando-se à religião uma forma acabada que ela não tem.
Creio não ser difícil imaginar que o candomblé, de fato, comporta elementos desses dois grandes tipos de religião, mas no conjunto se aproxima mais das religiões mágicas e rituais, e, como religião de serviço, chega praticamente a se colar no tipo estrito de religião mágica. O próprio movimento recente de abandono do sincretismo católico leva a um certo esvaziamento axiológico, esvaziamento de uma ética, ainda que tênue, partilhada em comunidades de candomblé antigas,  emprestada do catolicismo, ou imposta por ele,  uma vez que as questões de moralidade foram um terreno que o catolicismo dominador reservou para si e para seu controle no curso da formação das religiões negras no Brasil. Neste movimento, entretanto, o candomblé não pode mais voltar à tribo original nem ao modelo de justiça tradicional do ancestral, o egungun, para regrar a conduta na vida cotidiana. E nem precisa disto, pois não é mais no grupo fechado que está hoje sua força e sua importância como religião.
De todo modo, foi exatamente o desprendimento do candomblé de suas de amarras étnicas originais que o transformou numa religião para todos, ainda que sendo (ou talvez porque) uma religião aética, permitindo também a oferta de serviços mágicos para uma população fora do grupo de culto, que está habituada a compor, com base em muitos fragmentos de origens diferentes, formas privadas, às vezes até pessoais, de interpretação do mundo e de intervenção nele por meios objetivos e subjetivos e cujo acesso está codificado numa relação de troca, numa relação comercial para um tipo de consumo imediato, diversificado e particularizável que é contraposto ao consumo massificado que a sociedade pressupõe e obriga. Estou me referindo especialmente a indivíduos de classe média que usam experimentar códigos com os quais não mantêm vínculos e compromissos duradouros, e que o fazem por sua livre escolha, podendo contar com um repertório tanto mais variado quanto possível.

V: Uma religião para os excluído

Os cultos dos orixás no Brasil, dos quais excluo em grande parte a umbanda, pela dimensão kardecista-católica que compõe seu plano de moralidade, mas nos quais incluo as formas do candomblé baiano, do xangô pernambucano, batuque gaúcho, tambor-de-mina do Nordeste ocidental etc., têm sido, pelo menos desde os anos 30, e ininterruptamente, verdadeiros redutos homossexuais, de homossexuais de classe social inferior.  Com exceção de Ruth Landes, em seu escrito de 1940 (Landes, 1967), até bem pouco tempo os pesquisadores que erigiram a literatura científica sobre o candomblé sempre esconderam este fato, ou ao menos o relevaram como traço de algum terreiro "culturalmente decadente".  Ora, o homossexualismo está presente mesmo nas casas mais tradicionais do país, não viu quem não quis (sobre estudos contemporâneos, ver bibliografia em Teixeira, 1987).
O homossexual, sobretudo o homem, sempre foi obrigado a publicizar a sua intimidade como único meio de encontrar parceria sexual, e, ao publicizar sua intimidade, obrigava-se a desempenhar um papel social que não pusesse em risco a sua busca de parceiro, isto é, que não pusesse em risco o parceiro potencial, um papel que o mostrava como o de fora, o diferente, o não incluído, mas que ainda assim não chegava a oferecer qualquer risco de "contaminação" do parceiro, que para efeito público não chegava nunca a mudar de papel sexual.  Sua diferença o obrigou a desenvolver padrões de conduta que o identificasse facilmente: para ser homossexual era preciso mostrar-se homossexual. Pois nenhuma instituição social no Brasil, afora o candomblé, jamais aceitou o homossexual como uma categoria que não precisa necessariamente esconder-se, anulando-o enquanto tal. Só com os movimentos gay de origem norte-americana, a partir dos anos 60, é que se buscou quebrar a idéia de que o homossexual tinha que "parecer" diferente, num jogo que valorizou a semelhança e que, talvez, tenha dado suporte para a guetificação e "formação demográfica" dos hoje denominados "grupos de risco" da AIDS.
Esta aceitação de um grupo tão problemático para outras instituições, religiosas ou não, também demonstra a aceitação que o candomblé tem deste mundo, mesmo quando, no extremo, trata-se do mundo da rua, do cais do porto, dos meretrícios e portas de cadeia.  Grandíssima e exemplar é a capacidade do candomblé de juntar os santos aos pecadores, o maculado ao limpo, o feio ao bonito.  Se concordarmos que as maiores concentrações relativas de homossexuais e bissexuais ocorrem nas grandes cidades, onde podem refugiar-se no anonimato e na indiferença que os grandes centros oferecem (além de oferecerem locais e instituições de publicização, que na cidade grande podem funcionar como espaços fechados, isto é, públicos porém privatizados), encontramos uma razão a mais para o sucesso do candomblé em São Paulo — a possibilidade de fazer parte de um grupo religioso, isto é, voltado para o exercício da fé, mas que ao mesmo tempo é lúdico, reforçador da personalidade, capaz de aproveitar os talentos estéticos individuais e, por que não?, um nada desprezível meio de mobilidade social e acumulação de prestígio, coisas muito pouco ou nada acessíveis aos homossexuais em nossa sociedade. Ainda mais quando se é pobre, pardo, migrante, pouco escolarizado. O candomblé é assim, de fato, uma religião apetrechada para oferecer estratégias de vida que as ciências sociais jamais imaginaram.
Esta relação entre sacerdócio e homossexualidade não é prerrogativa nem do candomblé e nem de nossa civilização.  Mas o que faz do candomblé uma religião tão singular é o fato de que todos os seus adeptos devem exercer necessariamente algum tipo de cargo sacerdotal. E qualquer que seja o cargo sacerdotal ocupado, ninguém precisa esconder ou disfarçar suas preferências sexuais. Ao contrário, pode até usar o cargo para legitimar a preferência, como se usa o orixá para explicar a diferença. Para melhor entendermos isso tudo, entretanto, teríamos também que não deixar esquecido o fato de contarmos inclusive com variantes de uma sociabilidade, jeitos de ser e de viver,  vivenciadas  por grande parte da população brasileira mais pobre (que de todo lugar do país vai se juntando nas periferias metropolitanas), hoje não importando muito mais sua origem de cor, mas que é resultante também do nosso recente passado escravista, que amputava normas de conduta, suprimia instituições familiares e aleijava até mesmo as religiões das populações escravas. Donde fica evidentíssimo ser o candomblé uma religião brasileira muito mais que a simples reprodução de cultos africanos aos orixás como existiram e como existem além-mar. Considero bastante significativo o fato de o culto aos orixás, no Brasil, ter se "descolado" do culto dos antepassados, os egunguns a que já me referi (os quais aqui ganharam um culto à parte nos candomblés de egungun). Na África, eles não eram apenas partes de um mesmo universo religioso: o orixá era cultuado para zelar pela família e pelo indivíduo, o antepassado era cultuado para cuidar da comunidade como um todo. O antepassado garantia a regra, o orixá garantia a força sagrada agindo sobre a natureza.
Mas se o candomblé libera o indivíduo, ele libera também o mundo. Ele não tem uma mensagem para o mundo, não saberia o que fazer com ele se lhe fosse dado transformá-lo, não é uma religião da palavra, nunca será salvacionista.  É sem dúvida uma religião para a metrópole, mas somente para uma parte dela, como é destino das outras religiões hoje.  O candomblé pode ser a religião ou a magia daquele que já se fartou da transcendência despedaçada pelo consumo da razão, da ciência e da tecnologia e que se encontrou desacreditado do sentido de um mundo inteiramente desencantado — e o candomblé será aí uma religião aética para uma sociedade pós-ética.  Mas também pode ser a religião e a magia daquele que sequer chegou a experimentar a superação das condições de vida calçadas por uma certa sociabilidade do salve-se quem puder, onde o outro não conta e, quando conta, conta ou como opressor ou como vítima potencial, como inimigo, como indesejável, como o que torna demasiado pesado o fardo de viver num mundo que parece ser por demais desordenado — e o candomblé poderá ser então uma religião aética para uma sociedade pré-ética.

VI: Sacerdotes e feiticeiros

No candomblé, a iniciação significa fazer parte dos quadros sacerdotais, que são basicamente de duas naturezas (dos que entram em transe e dos que não), organizados hierarquicamente e que pressupõem um tipo de mobilidade ex opere operato. Todo iaô que passar por suas obrigações pode chegar a pai-de-santo ou mãe-de-santo, independentemente de seu comportamento na vida cotidiana, isto é, fora dos limites impostos pelas obrigações rituais do devoto para com seu deus e alheio aos deveres de lealdade para com o seu iniciador, o qual, entretanto, pode ser substituído por outro através de adoção ritual, sempre que ocorrer, por um motivo ou outro, quebra pública desta relação de lealdade e dependência.
Ser pai ou mãe-de-santo não é aspiração de todos os iniciados, nem jamais pode ser em se tratando da categoria dos ebômis não rodantes (equedes e ogãs). Entretanto, é perspectiva muito importante para boa parcela dos adeptos. Provenientes, em geral, de classes sociais baixas (e agora não importa mais se são brancos ou se negros) vir a ser um pai-de-santo representa para os iniciados a possibilidade de exercer uma profissão que, nascida como ocupação voltada para os estratos baixos e de origem negra, passou recentemente, ao compor os quadros dos serviços de oferta generalizada a todos os seguimentos sociais, a reivindicar o status de uma profissão de classe média, como já ocorreu com outras atividades profissionais e em outros contextos sociais (Hobsbawn, 1984: 299). O pai-de-santo não é mais a figura escondida, perseguida, desprezada. Ele tem visibilidade na sociedade e transita o tempo todo nos meios de classe média, que o buscam em seu terreiro e, assim fazendo, tiram-no do anonimato.
Ao mostrar-se em público, o pai-de-santo vê-se obrigado a ostentar símbolos que expressem a sua profissão. Não contando com cabedal intelectual adquirido na escola — o que é decisivo na identidade de classe média da maioria das profissões não proletárias, ainda que simbolicamente — o pai e a mãe-de-santo fazem-se perceber por um estilo de vestuário e um excesso de jóias ou outros enfeites levados no pescoço, na cabeça, na cintura e nos pulsos, que dão a impressão de serem originalmente africanos ou de origem africana, mas cuja "tradição" não tem mais que meio século. Ele e ela fazem-se diferentes e, quanto mais diferentes, melhor. Um outro "sinal" de prestígio amealhado com freqüência por sacerdotes do candomblé, bem como da umbanda, são as medalhas e comendas concedidas por inúmeras sociedades medalhísticas de finalidade autopromocional, e que servem para substituir, às vezes com vantagens, os diplomas e graus universitários. Tudo isto faz parte de um processo de mobilidade social que está ao alcance de pessoas que, por suas origens sociais, dificilmente encontrariam outro canal de ascensão social. A mobilidade e a visibilidade social que sua profissão agora pressupõe são importantes para conferir ao pai-de-santo uma presença voltada para fora do terreiro, que lhe garanta um fluxo de clientes cujo pagamento por serviços mágicos permite a constituição de um fundo econômico que facilita, no mínimo materialmente, a sua realização como líder religioso de seu grupo de adeptos, numa religião em que o dispêndio material é muito grande e decididamente muito significativo.
Este pai-de-santo e esta mãe-de-santo são sacerdotes de uma religião em que as tensões entre magia e prática religiosa estão descartadas. Pode-se finalmente ser, ao mesmo tempo, o sacerdote e o feiticeiro, numa situação social em que cada um destes papéis reforçará o outro. E numa sociedade em que cada um deles estará orientado, preferencialmente,  para grupos, e até mesmo classes sociais, diferentes.
Ao se realizar como instituição legitimada de prática mágica, o candomblé na metrópole faz parte publicamente do jogo de múltiplos aspectos através do qual cada grupo ou cada pessoa, individualmente, é capaz de construir sua própria fonte de explicação, de transcendência e de intervenção no mundo. A capacidade de se manter como religião aética, que o candomblé demonstra ter, permite-lhe vantajosa flexibilidade em relação às outras religiões éticas e a abertura para um mercado religioso de  consumo ad hoc, por parte dos clientes não religiosos, que as religiões de conversão em geral não têm. A racionalização do jogo de búzios e do ebó (ao se apresentarem como menos sacralizados do que na verdade o são), o atendimento privativo e com hora marcada, o anonimato do serviço, a explicitação do pagamento monetário na relação de troca, a presença do pai-de-santo num mercado público regido por regras de eficiência e competência profissional, bem como suas próprias regras aéticas no plano do grupo religioso, fazem desta religião tribal de deuses africanos uma religião para a metrópole, onde o indivíduo é cada vez mais um bricoleur.
Nesta sociedade metropolitana — no rastro das transformações sociais de âmbito mundial dos últimos cinqüenta anos — a construção de sistemas de significados depende cada vez mais da vontade de grupos e indivíduos. Neste movimento, os temas religiosos relevantes, como afirma Luckmann, podem ser selecionados a partir de diferentes preferências particulares. No limite, cada indivíduo pode ter o seu particular e pessoal modelo de religiosidade independente dos grandes sistemas religiosos totalizadores que marcaram, até bem pouco, a história da humanidade.
Os deuses tribais africanos adotados na metrópole não são mais os deuses da tribo. São deuses de uma civilização em que o sentido da religião e da magia passou a depender, sobretudo, do estilo de subjetividade que o homem, em grupo ou solitariamente, escolhe para si.

VII: A religião dos orixás na sociedade contemporânea

O candomblé, tal como existe hoje nos grandes centros urbanos do Brasil, é capaz de oferecer a seus seguidores algo diferente daquilo que a religião dos orixás, em tempos mais antigos, podia certamente propiciar, quando sua presença significava para o escravo a ligação afetiva e mágica ao mundo africano do qual fora arrancado pela escravidão. Quando o candomblé se organizou no Nordeste, no século 19, ele permitia ao iniciado a reconstrução simbólica, através do terreiro, da sua comunidade tribal africana perdida. Primeiro ele é o elo com o mundo original.  Ele representava, assim, o mecanismo através do qual o negro africano e brasileiro podia distanciar-se culturalmente do mundo dominado pelo opressor branco. O negro podia contar com um mundo negro, fonte de uma África simbólica, mantido vivo pela vida religiosa dos terreiros, como meio de resistência ao mundo branco, que era o mundo do trabalho, do sofrimento, da escravidão, da miséria.  Bastide mostrou como a habilidade do negro, durante o período colonial, de viver em dois diferentes mundos ao mesmo tempo era importante para evitar tensões e resolver conflitos difíceis de suportar sob a condição escrava (Bastide, 1975). Logo, o mesmo negro que reconstruiu a África nos candomblés, reconheceu a necessidade de ser, sentir-se e se mostrar brasileiro, como única possibilidade de sobrevivência, e percebeu que para ser brasileiro era absolutamente imperativo ser católico, mesmo que se fosse também de orixá.  O sincretismo se funda neste jogo de construção de identidade.  O candomblé nasce católico quando o negro precisa ser também brasileiro.
Quando o candomblé, a partir dos anos 1960, deslancha a caminho de se tornar religião universal, afrouxa-se seu foco nas diferenças raciais e ele vai deixando para trás seu significado essencial de mecanismo de resistência cultural, embora continue a prover esse mecanismo a muitas populações negras que vivem de certo modo econômica e culturalmente isoladas em regiões tradicionais do Brasil.  As novas condições de vida na sociedade brasileira industrializada fazem mudar radicalmente o sentido sociológico do candomblé.  Se até poucas décadas atrás  ele significava uma reação à segregação racial numa sociedade tradicional, em que as estruturas sociais tinham mais o aspecto de estamentos que de classes, agora ele tem o sentido de escolha pessoal, livre, intencional: alguém adere ao candomblé não pelo fato de ser negro, mas porque sente que o candomblé pode fazer sua vida mais fácil de ser vivida, porque então talvez se possa ser mais feliz, não importa se se é branco ou negro[8]. Evidentemente, embora o processo de escolha religiosa possa ter conseqüências sociais significativas para a sociedade como um todo — na medida que com a escolha certas religiões podem ser mais reforçadas e neste sentido ter aumentada sua influência na sociedade — qualquer eficácia da religião no que diz respeito à esfera íntima só pode ser avaliada pelo indivíduo que a ela se converte.
O desatar de laços étnicos que, no curso da últimas três décadas,  tem transformado o candomblé numa religião para todos, também propiciou um nada desprezível alargamento da oferta de serviços mágicos para a população exterior aos grupos de culto.  Uma clientela já acostumada a compor visões de mundo particulares a partir de fragmentos originários de diferentes métodos e fontes de interpretação da vida.  O candomblé oferece símbolos e sentidos hoje muito valorizados pela música, literatura, artes em geral, os quais podem ser fartamente usados pela clientela na composição dessa visão de mundo caleidoscópica, sem nenhum compromisso religioso. O cliente de classe média que vai aos candomblés para jogar búzios e fazer ebós é o bricoleur que também tem procurado muitas outras fontes não racionais de sentido para a vida e de cura para males de toda natureza.  Certamente o candomblé deste cliente é bem diferente do candomblé do iniciado, mas nenhum deles contradiz o sentido do outro.
O candomblé é uma religião que tem no centro o rito, as fórmulas de repetição, pouco importando as diferenças entre o bem e o mal no sentido cristão.  O candomblé administra a relação entre cada orixá e o ser humano que dele descende, evitando, através da oferenda, os desequilíbrios desta relação que podem provocar a doença, a morte, as perdas materiais, o abandono afetivo, os sofrimentos do corpo e da alma e toda sorte de conflito que leva à infelicidade. Como religião em que não existe a palavra no sentido ético, nem a conseqüente pregação moral, o candomblé (juntamente com a umbanda, que contudo tem seu aspecto de religião aética atenuado pela incorporação de virtudes teologais do kardecismo, como a caridade) é sem dúvida uma alternativa religiosa importante também para grupos sociais que vivem numa sociedade como a nossa, em que a ética, os códigos morais e os padrões de comportamento estritos podem ter pouco, variado e até mesmo nenhum valor.
O candomblé é uma religião que afirma o mundo, reorganiza seus valores e também reveste de estima muitas das coisa que outras religiões consideram más: por exemplo, o dinheiro, os prazeres (inclusive os da carne), o sucesso, a dominação e o poder. O iniciado não tem que internalizar valores diferentes daqueles do mundo em que ele vive.  Ele aprende os ritos que tornam a vida neste mundo mais fácil e segura, mundo pleno de possibilidades de bem-estar e prazer.  O seguidor do candomblé propicia os deuses na constante procura do melhor equilíbrio possível (ainda que temporário) entre aquilo que ele é e tem e aquilo que ele gostaria de ser e ter.  Nessa procura, é fundamental que o iniciado confie cegamente em sua mãe-de-santo.  Guiado por ela, este fiel aprende, ano após ano, a repetir cada uma das fórmula iniciáticas necessárias à manipulação da força sagrada da natureza, o axé.  Não se pode ser do candomblé sem constantemente refazer o rito, como não se pode ser evangélico sem constantemente examinar a própria consciência à procura da culpa que delata a presença das paixões que precisam ser exorcizadas. O bom evangélico, para se salvar da danação eterna,  precisa aniquilar seus desejos mais escondidos; o bom filho-de-santo precisa realizar todos os seus desejos para que o axé, a força sagrada de seu orixá, de quem é continuidade, possa se expandir e se tornar mais forte.  Aceitando o mundo como ele é, o candomblé aceita a humanidade, situando-a no centro do universo, apresentando-se como religião especialmente dotada para a sociedade narcisista e egoísta em que vivemos.
Porque o candomblé não distingue entre o bem e o mal do modo como aprendemos com o cristianismo, ele tende a atrair também toda sorte de indivíduos que têm sido socialmente marcados e marginalizados por outras instituições religiosas e não religiosas.  Isto mostra como o candomblé aceita o mundo, mesmo quando ele é o mundo  da rua, da prostituição, dos que já cruzaram as portas da prisão.  O candomblé não discrimina o bandido, a adúltera, o travesti e todo tipo de rejeitado social.  Mas se o candomblé libera o indivíduo, ele também libera o mundo: não tem para este nenhuma mensagem de mudança; não deseja transformá-lo em outra coisa, como se propõem, por exemplo, os católicos que seguem a Teologia da Libertação, sempre interessados em substituir este mundo por outro mais justo. O candomblé se preocupa sobretudo com aspectos muito concretos da vida: doença, dor, desemprego, deslealdade, falta de dinheiro, comida e abrigo — mas sempre tratando dos problemas caso a caso, indivíduo a indivíduo, pois não se trabalha aqui com a noção de interesses coletivos, mas sempre com a de destino individual. O candomblé também pode ser a religião ou a magia daquele que já se fartou dos sentidos dados pela razão, ciência e tecnologia, e que deixou de acreditar no sentido de um mundo totalmente desencantado, que deixou para trás a magia, em nome da eficácia do secular pensamento moderno.  Talvez o candomblé possa ser a religião daquele que não consegue atinar com o senso de justiça social suficiente para resolver muitos dos problemas que cada indivíduo enfrenta no curso de sua vida pelo mundo desencantado.
O candomblé também oferece a seus iniciados e simpatizantes uma particular possibilidade de prazeres estéticos, que se esparrama pelas mais diferentes esfera da arte e da diversão, da música à cozinha, do artesanato à escola de samba, além da fascinação do próprio jogo de búzios, o portão de entrada para o riquíssimo universo cultural dos orixás. O candomblé ensina, sobretudo, que antes de se louvarem os deuses, é imperativo louvar a própria cabeça; ninguém terá um deus forte se não estiver bem consigo mesmo, como ensina o dito tantas vezes repetidos nos candomblés: "Ori buruku kossi orixá", ou "Cabeça ruim não tem orixá".  Para os que se convertem, isso faz uma grande diferença em termos de auto-estima.
Na nossa sociedade das grandes metrópoles, se a construção de sentidos depende cada vez mais do desejo de grupos e indivíduos que podem escolher esta ou aquela religião, ou fragmentos delas, a relevância dos temas religiosos igualmente pode ser atribuída de acordo com preferências privadas.  A religião é agora matéria de preferência, de tal sorte que até mesmo escolher não ter religião alguma é inteiramente aceitável socialmente. Assim, os deuses africanos apropriados pelas metrópoles da América do Sul não são mais deuses da tribo, impostos aos que nela nascem. Eles são deuses numa civilização em que os indivíduos são livres para escolhê-los ou não, continuar fielmente nos seus cultos ou simplesmente abandoná-los. O candomblé pode também significar a possibilidade daquele que é pobre e socialmente marginalizado ter o seu deus pessoal que ele alimenta, veste e ao qual dá vida para que possa ser honrado e homenageado por toda uma comunidade de culto. Quando a filha-de-santo se deixa cavalgar pelo seu orixá, a ela se abre como palco o barracão em festa, para o que talvez seja a única possibilidade na sua pobre vida de experimentar uma apresentação solo, de estar no centro das atenções, quando seu orixá, paramentado com as melhores roupas e ferramentas de fantasia, há de ser admirado e aclamado por todos os presentes, quiçá invejado por muitos. E por toda a noite o cavalo dos deuses há de dançar, dançar e dançar.  Ninguém jamais viu um orixá tão bonito como o seu.

Anexo:        
Atributos básicos dos orixás no candomblé

 (Nação queto)

Orixá
Atribuição
Sexo
Elemento Natural
Patronagem
Exu
orixá mensageiro, guardião das encruzilhadas e da entrada das casas
M
minério de ferro
comunicação, transformação, potência sexual
Ogum
orixá da metalurgia, da agricultura e da guerra
M
ferro forjado
estradas abertas,
ocupações manuais,
soldados e polícia
Oxóssi ou Odé

orixá da caça (fauna)
M
florestas
fartura de alimentos
Ossaim
orixá da vegetação (flora)
M
folhas
eficácia dos remédios e da medicina
Oxumarê
orixá do arco-íris
M e F (andrógino)
chuva e condições atmosféricas
riqueza que provém das colheitas (chuva)
Obaluaiê ou Omulu
orixá da varíola, pragas e doenças
M
terra, solo
cura de doenças físicas
Xangô
orixá do trovão
M
trovão e pedras  (pedra de raio)
governo, justiça,
tribunais,
ocupações burocrática
Oiá ou Iansã
orixá do relâmpago,
dona dos espíritos dos mortos
F
relâmpagos, raios, vento  tempestade
sensualidade, amor carnal, desastres atmosféricos
Obá 
orixá dos rios
F
rios
trabalho doméstico e o poder da mulher
Oxum
orixá da água doce e dos metais preciosos
F
rios, lagoas e cachoeiras
amor, ouro, fertilidade, gestação, vaidade
Logun-Edé

orixás dos rios que correm nas florestas
M  ou  F         (alternadamente)
rios e florestas
o mesmo que Oxum e Oxóssi, seus pais
Euá
orixá das fontes
F
nascentes e riachos
harmonia doméstica
Iemanjá
orixá das grandes águas, do mar
F
mar, grandes rios
maternidade, família, saúde mental
Nanã
orixá da lama do fundo das águas
F
lama, pântanos
educação, senioridade e morte
Oxaguiã (Oxalá Jovem)
orixá da criação (criação da cultura material)
M
ar
cultura material, sobrevivência
Oxalufã (Oxalá Velho)
orixá da criação (criação da humanidade)
M e F (princípio da Criação)
ar
o sopro da vida



Orixá
Representação material/ Fetiche/
Assentamento
Elemento mítico
Cores das roupas
Cores das contas
Exu
laterita enterrada e garfos de ferro em alguidar de barro
fogo e terra
vermelho e preto
vermelho e preto (alternadas)
Ogum
instrumentos agrícolas de ferro em miniatura em alguidar de barro
terra
azul escuro,
verde e branco
azul escuro ou verde
Oxóssi ou Odé
pequeno arco-e-flecha de metal (ofá) em alguidar de barro
terra
azul turquesa e verde
azul turquesa
Ossaim
feixe de seis setas de ferro com folhas e um pássaro no centro, em alguidar de barro
terra
verde e branco
verde e branco (alternadas)
Oxumarê
duas cobras de metal entrelaçadas
água
amarelo, verde e preto
amarelo, verde e preto, ou búzios
Obaluaiê ou Omulu
cuscuzeiro de barro com lanças de ferro
terra
vermelho, branco e preto, com capuz de palha
vermelho, branco e preto
Xangô
pedra em uma gamela
fogo
vermelho, marrom e branco
vermelho e branco (alternadas)
Oiá ou Iansã
seixo de rio em sopeira
ar, água e fogo
marrom e vermelho escuro ou branco
marrom ou vermelho escuro
Obá
seixo de rio em sopeira de louça
água
vermelho e dourado
vermelho e amarelo translúcido
Oxum
seixo de rio em sopeira de louça
água
amarelo ou dourado com pouco de azul
amarelo translúcido
Logun-Edé
ofá de metal e seixos de rio em alguidar de barro
água e terra
dourado e azul turquesa
dourado translúcido e turquesa (alternadas)
Euá
cobra de ferro e seixos em sopeira de louça
água
vermelho e amarelo
búzios
Iemanjá
seixo do mar em sopeira de louça
água
azul claro, branco, verde claro
de vidro só incolor, ou com azul ou verde translúcidos alternadamente
Nanã


seixos e búzios em sopeira
água
púrpura, azul e branco
brancas rajadas de azul cobalto
Oxaguiã (Oxalá Jovem)
pequeno pilão de prata ou estanho  e seixo em sopeira de louça branca
ar
branco (com um mínimo de azul real)
branco e azul real
Oxalufã (Oxalá Velho)
círculo de prata ou estanho e seixo em sopeira de louça branca
ar
branco
branco



Orixá
Animais sacrificiais
Comidas favoritas
Números no jogo de búzios
Dia da semana
Exu
bode e galo pretos
farofa com dendê
1
7
Segunda-feira
Ogum
cabrito e frango
feijoada e inhame assado
3
7
Terça-feira
Oxóssi ou Odé
animais de caça e porco
milho cozido com fatias de coco; frutas
3
6
Quinta-feira
Ossaim
caprinos e aves machos e fêmeas
milho cozido temperado com fumo, frutas
1
7
Quinta-feira
Oxumarê
cabrito e cabra
batata doce cozida e amassada
3
6
11
Sábado
Obaluaiê ou Omulu
porco
pipoca com fatias de coco
1
3
11
Segunda-feira
Xangô
carneiro e cágado
amalá: quiabo cortado em fatias cozido no dendê com camarão seco
4
6
12
Quarta-feira
Oiá ou Iansã
cabra galinha
acarajé: bolinhos de feijão fradinho fritos em dendê
4
9
Quarta-feira
Obá
cabra e galinha
omelete com quiabo
4
6
9
Quarta-feira
Oxum
cabra e galinha
omolocum: purê de feijão fradinho enfeitado com cinco ovos cozidos

5
8
Sábado
Logun-Edé
casal de cabritos e de aves
milho cozido, peixe e frutas
6
7
9
Quinta-feira
Euá
cabra e galinha
feijão preto com ovos cozidos
3
6
Sábado
Iemanjá
pata, cabra, ovelha, peixe
arroz coberto com clara batida, canjica, peixe assado
3
9
10
Sábado
Nanã
cabra e capivara
mingau de farinha de mandioca
3
8
11
Segunda-feira
Oxaguiã (Oxalá Jovem)
caracol (catassol)
inhame pilado e canjica
8
Sexta-feira
Oxalufã (Oxalá Velho)
caracol (catassol)
canjica, arroz com mel, inhame pilado
10
Sexta-feira


Orixá
Objetos rituais
Tabus dos filhos
Sincretismo/ Correspondência



Santo católico
Vodum Jeje
Inquice Banto
Exu (chamado Bara no batuque do Rio Grande do Sul)
ogó: bastão com formato fálico
carregar objetos na cabeça
Diabo
Elegbara
Bara
Eleguá
Bombogira
Aluviá
Ogum
espada
embebedar-se
Santo Antônio
São Jorge
Gun
Doçu
Incáci
Roximucumbe
Oxóssi ou Odé
ofá: arco-e-flexa de metal; eru: espanta-mosca de rabo de cavalo
comer mel
São Jorge
São Sebastião
Azacá
Gongobira
Mutacalombo
Ossaim
lança e três cabaças contendo as folhas sagradas
assobiar
Santo Onofre
Agué
Catendê
Oxumarê
espada e cobras de metal
rastejar
São Bartolomeu
Bessém
Angorô
Obaluaiê ou Omulu
xaxará: cetro feito de fibras das folhas do dendezeiro com búzios
ir a funerais
São Lázaro
São Roque
Acóssi-Sapatá
Xapanã
Cafunã
Cavungo
Xangô
oxé: machado duplo;
xere: chocalho de metal
contato com mortos e cemitérios; vestir-se de vermelho
São Jerônimo
São João
Badé
Queviosô
Zázi
Oiá ou Iansã
espada e eru (espanta-mosca)
comer carneiro ou ovelha, comer abóbora
Santa Bárbara
Sobô
Matamba
Bumburucema
Obá
espada e escudo circular
comer cogumelos; usar brincos
Santa Joana D'Arc


Oxum

abebê: leque de metal amarelo; espada
comer peixe de escamas
Nossa Senhora das Candeias
Aziritobosse
Navê
Navezuarina
Samba
Quissambo
Logun-Edé
ofá e abebê
usar roupa marrom ou vermelha
São Miguel Arcanjo
Bosso Jara

Euá
espada e chocalho de matéria vegetal; esfera
comer aves fêmeas
Santa Lúcia
Euá

Iemanjá
abano de metal branco e espada
comer caranguejo; matar camundon-go ou barata
Nossa Senhora da Conceição
Abê
Dandalunda
Quissembe
Nanã
ibiri: cetro em forma de arco, de fibras das  folhas do dendezeiro com búzios
usar facas de metal
Santana
Nanã

Oxaguiã (Oxalá Jovem)
mão de pilão de prata ou de material branco
comida com dendê; vinho de palma; usar roupa colorida às sextas-feiras
Jesus (Menino)


Oxalufã (Oxalá Velho)
opaxorô: cajado prateado com pingentes representando a criação do mundo
comida com dendê; vinho de palma; usar roupa colorida às sextas-feiras
Jesus (Crucificado ou Redentor)
Liçá
Zambi

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* Publicado originalmente com o título “Dei africani nellodierno Brasile”, in Luisa Faldini Pizzorno (org.), Sotto le acque abissali. Firenze, Aracne, 1995.
[1] Bastide, 1975; Carneiro, 1936.
[2] Rodrigues, 1935; Bastide, 1978.
[3] Motta, 1982; Pinto, 1935.
[4] S. Ferretti, 1986; M. Ferretti, 1985; Eduardo, 1948.
[5] Herskovits, 1943; Corrêa, 1992; Oro, 1994.
[6] Bastide, 1975; Prandi, 1991a..
[7] Conforme pesquisa realizada em 60 terreiros paulistas de candomblé, sobretudo em três deles em que o trabalho de campo foi mais demorado: o Ilê Axé Ossaim Darê, de Pai Doda Braga de Ossaim, em Pirituba, o Ilê Axé Yemojá Orukoré Ogum, de Pai Armando Vallado de Ogum, em  Itapevi, e o Ile Leuiwyato, de Mãe Sandra Medeiros Epega de Xangô, em Guararema (Prandi, 1991a). Os estereótipos aqui apresentados são em grande parte coincidentes com aqueles colhidos em Salvador, no Rio de Janeiro, e mesmo na África, conforme Lépine, 1981; Augras, 1983; Verger, 1985a.
[8] "Os negros [ainda hoje] marcam maior presença nas religiões afro-brasileiras, onde somam, entre pardos e pretos, 42,7%.  Sua presença relativa sobe ainda mais no candomblé, originariamente a grande fonte de identidade negra, em que chegam a 56,8% — a única modalidade religiosa em que o negro é a maioria dos fiéis.  Mas há muito branco nas afro-brasileiras (51,2%) e mesmo no candomblé, em que representam 39,9%." Em números absolutos, os maiores contingentes negros são, evidentemente, católicos e em segundo lugar, evangélicos (Prandi, 1995).

FONTE:http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/epilogo.htm